quarta-feira, 29 de abril de 2015

Oportunidades são Responsabilidades...

As pessoas fogem às responsabilidades, e essa atitude é uma das causas de mal-estar. Pensam que as responsabilidades desaparecem por si se as ignorarem ou evitarem. A base da evolução e a realização é a responsabilidade. Responsabilidade é o preço a pagar pelo direito de fazermos as nossas próprias escolhas. Responsabilidade é apenas outra palavra para designar oportunidade. E tornamo-nos ricos ou pobres para sempre conforme aproveitarmos ou deixarmos fugir a oportunidade. 


Alfred Montapert, in 'A Suprema Filosofia do Homem' 

Sónia & José Costa





Não há Vida Boa sem Auto-domínio...

O homem faz-se ou desfaz-se a si mesmo. O homem controla as suas paixões, as suas emoções, o seu futuro. Consegue-o canalizando os seus impulsos físicos para conseguir realizações espirituais. Qualquer animal pode esbanjar a sua força realizando os impulsos físicos sempre que os sente. Compete ao homem canalizá-los para fins mais produtivos que a satisfação dos impulsos. Ninguém se tornou ilustre por fazer o que lhe apetecia. Os homens insignificantes fazem o que querem - e tornam-se nuns Zés-Ninguém. Os grandes submetem-se às leis que regem o sector em que são grandes. 

O autodomínio é sempre recompensado com uma força que dá uma alegria interior inexprimível e silenciosa que se torna no tom dominante da vida. O autodomínio é a qualidade que distingue os mais aptos para sobreviverem. O mais importante atributo do homem como ser moral é a faculdade de autodomínio escreveu Herbert Spencer. Nunca houve, nem pode haver, uma vida boa sem autodomínio; sem ele a vida é inconcebível. A vitória mais importante e mais nobre do homem é a conquista de si mesmo.

Alfred Montapert, in 'A Suprema Filosofia do Homem' 

Sónia & José Costa





Alimentar o Ego...

Para quem faz do sonho a vida, e da cultura em estufa das suas sensações uma religião e uma política, para esse primeiro passo, o que acusa na alma que ele deu o primeiro passo, é o sentir as coisas mínimas extraordinária — e desmedidamente. Este é o primeiro passo, e o passo simplesmente primeiro não é mais do que isto. Saber pôr no saborear duma chávena de chá a volúpia extrema que o homem normal só pode encontrar nas grandes alegrias que vêm da ambição subitamente satisfeita toda ou das saudades de repente desaparecidas, ou então nos actos finais e carnais do amor; poder encontrar na visão dum poente ou na contemplação dum detalhe decorativo aquela exasperação de senti-los que geralmente só pode dar, não o que se vê ou o que se ouve, mas o que se cheira ou se gosta — essa proximidade do objecto da sensação que só as sensações carnais — o tacto, o gosto, o olfacto - esculpem de encontro à consciência; poder tornar a visão interior, o ouvido do sonho — todos os sentidos supostos e do suposto — recebedores e tangíveis como sentidos virados para o externo: escolho estas, e as análogas suponham-se, dentre as sensações que o cultor de sentir-se logra, educado já, espasmar, para que dêem uma noção concreta e próxima do que busco dizer. 


O chegar, porém, a este grau de sensação, acarreta ao amador de sensações o correspondente peso ou gravame, físico de que correspondentemente sente, com idêntico exaspero consciente, o que de doloroso impinge do exterior, e por vezes do interior também, sobre o seu momento de atenção. E quando assim constata que sentir excessivamente, se por vezes é gozar em excesso, é outras sofrer com prolixidade, e porque o constata, é que o sonhador é levado a dar o segundo passo na sua ascensão para si próprio. Ponho de parte o passo que ele poderá ou não dar, e que, consoante ele o possa ou não dar, determinará tal ou tal outra atitude, jeito de marcha, nos passos que vai dando, segundo possa ou não isolar-se por completo da vida real (se é rico ou não, — redunda nisso). Porque suponho compreendido nas entrelinhas do que narro, que, consoante é ou não possível ao sonhador isolar-se e dar-se a si, ou não é, com menor, ou maior, intensidade ele deve concentrar-se sobre a sua obra de despertar doentiamente o funcionamento das suas sensações das coisas e dos sonhos. Quem tem de viver entre os homens, activamente e encontrando-os, — e é realmente possível reduzir ao mínimo a intimidade que se tem de ter com eles (a intimidade, e não o mero contacto, com gente, é que é o prejudicador) — terá de fazer gelar toda a sua superfície de convivência para que todo o gesto fraternal e social feito a ele escorregue e não entre ou não se imprima. Parece muito isto, mas é pouco. Os homens são fáceis de afastar: basta não nos aproximarmos. Enfim, passo sobre este ponto e reintegro-me no que explicava.

O criar uma agudeza e uma complexidade imediata às sensações as mais simples e fatais, conduz, eu disse, se a aumentar imoderadamente o gozo que sentir dá, também a elevar com despropósito o sofrimento que vem de sentir. Por isso o segundo passo do sonhador deverá ser o evitar o sofrimento. Não deverá evitá-lo como um estóico ou um epicurista da primeira maneira — desnificando-se porque assim endurecerá para o prazer, como para a dor. Deverá ao contrário ir buscar à dor o prazer, e passar em seguida a educar-se a sentir a dor falsamente, isto é, a ter ao sentir a dor, um prazer qualquer. Há vários caminhos para esta atitude. Um é aplicar-se exageradamente a analisar a dor, tendo preliminarmente disposto o espírito e perante o prazer não analisar mas sentir apenas; é uma atitude mais fácil, aos superiores é claro, do que dita parece. Analisar a dor e habituar-se a entregar a dor sempre que aparece, e até que isso aconteça por instinto e sem pensar nisso, à análise, acrescenta a toda a dor o prazer de analisar. Exagerado o poder e o instinto de analisar, breve o seu exercício absorve tudo e da dor fica apenas uma matéria indefinida para a análise.

Outro método, mais subtil esse e mais difícil, é habituar-se a encarnar a dor numa determinada figura ideal. Criar um outro Eu que seja o encarregado de sofrer em nós, de sofrer o que sofremos. Criar depois um sadismo interior, masoquista todo, que goze o seu sofrimento como se fosse de outrem. Este método — cujo aspecto primeiro, lido, é de impossível — não é fácil, mas está longe de conter dificuldades para os industriados na mentira interior. Mas é eminentemente realizável. E então, conseguido isso, que sabor a sangue e a doença, que estranho travo de gozo longínquo e decadente, que a dor e o sofrimento vestem! Doer aparenta-se com o inquieto e magoante auge dos espasmos. Sofrer, o sofrer longo e lento, tem o amarelo íntimo da vaga felicidade das convalescenças profundamente sentidas. E um requinte gasto a desassossego e a dolência, aproxima essa sensação complexa da inquietação que os prazeres causam na ideia de que fugirão, e a dolência que os gozos tiram do antecansaço que nasce de se pensar no cansaço que trarão.

Há um terceiro método para subtilizar em prazeres as dores e fazer das dúvidas e das inquietações um mole leito. É o dar às angústias e aos sofrimentos, por uma aplicação irritada da atenção, uma intensidade tão grande que pelo próprio excesso tragam o prazer do excesso, assim como pela violência sugiram a quem de hábito e educação de alma ao prazer se vota e dedica, o prazer que dói porque é muito prazer, o gozo que sabe a sangue porque feriu. E quando, como em mim — requintador que sou de requintes falsos, arquitecto que me construo de sensações subtilizadas através da inteligência, da abdicação da vida, da análise e da própria dor — todos os três métodos são empregados conjuntamente, quando uma dor, sentida imediatamente, e sem demoras para estratégia íntima, é analisada até à secura, colocada num Eu exterior até à tirania, e enterrada em mim até ao auge de ser dor, então verdadeiramente eu me sinto o triunfador e o herói. Então me pára a vida, e a arte se me roja aos pés.

Tudo isto constitui apenas o segundo passo que o sonhador deve dar para o seu sonho.

O terceiro passo, o que conduz ao limiar rico do Templo — esse quem que não só eu o soube dar? Esse é o que custa porque exige aquele esforço interior que é imensamente mais difícil que o esforço na vida, mas que traz compensações pela alma fora que a vida nunca poderá dar. Esse passo é, tudo isso sucedido, tudo isso totalmente e conjuntamente feito — sim, empregados os três métodos subtis e empregados até gastos, passar a sensação imediatamente através da inteligência pura, coá-la pela análise superior, para que ela se esculpa em forma literária e tome vulto e relevo próprio. Então eu fixei-a de todo. Então eu tornei o irreal real e dei ao inatingível um pedestal eterno. Então fui eu, dentro de mim, coroado o Imperador.

Porque não acrediteis que eu escrevo para publicar, nem para escrever nem para fazer arte, mesmo. Escrevo, porque esse é o fim, o requinte supremo, o requinte temperamentalmente ilógico (...), da minha cultura de estados de alma. Se pego numa sensação minha e a desfio até poder com ela tecer-lhe a realidade interior a que eu chamo ou a A Floresta do Alheamento, ou a Viagem Nunca Feita, acreditai que o faço não para que a prosa soe lúcida e trémula, ou mesmo para que eu goze com a prosa — ainda que mais isso quero, mais esse requinte final ajunto, como um cair belo de pano sobre os meus cenários sonhados — mas para que dê completa exterioridade ao que é interior, para que assim realize o irrealizável, conjugue e contraditório e, tornando o sonho exterior, lhe dê o seu máximo poder de puro sonho, estagnador de vida que sou, burilador de inexactidões, pajem doente da minha alma Rainha, lendo-lhe ao crepúsculo não os poemas que estão no livro, aberto sobre os meus joelhos, da minha Vida, mas os poemas que vou construindo e fingindo que leio, e ele fingindo que ouve, enquanto a Tarde, lá fora não sei como ou onde, dulcifica sobre esta metáfora erguida dentro de mim em Realidade Absoluta a luz ténue e última dum misterioso dia espiritual.

Fernando Pessoa, 'Livro do Desassossego (Educação Sentimental[?])' 

Sónia & José Costa





Quando Falo com Sinceridade não sei com que Sinceridade Falo...

Não sei quem sou, que alma tenho. 

Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou váriamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpétuamente me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.

Fernando Pessoa, in 'Para a Explicação da Heteronímia' 

Sónia & José Costa





Não Tenho Rancores nem Ódios...

Pertenço a uma geração que ainda está por vir, cuja alma não conhece já, realmente, a sinceridade e os sentimentos sociais. Por isso não compreendo como é que uma criatura fica desqualificada, nem como é que ela o sente. É oca de sentido, para mim, toda essa (...) das conveniências sociais. Não sinto o que é honra, vergonha, dignidade. São para mim, como para os do meu alto nível nervoso, palavras de uma língua estrangeira, como um som anónimo apenas. 
Ao dizerem que me desqualificaram, eu não percebo senão que se fala de mim, mas o sentido da frase escapa-me. Assisto ao que me acontece, de longe, desprendidamente, sorrindo ligeiramente das coisas que acontecem na vida. Hoje, ainda ninguém sente isto; mas um dia virá quem o possa perceber.
Procurei sempre ser espectador da vida, sem me misturar nela. Assim, a isto que se passa comigo, eu assisto como um estranho; salvo que tiro dos pobres acontecimentos que me cercam a volúpia suave de (...).

Não tenho rancor nenhum a quem provocou isto. Eu não tenho rancores nem ódios. Esses sentimentos pertencem àqueles que têm uma opinião, ou uma profissão ou um objectivo na vida. Eu não tenho nada dessas coisas. Tenho na vida o interesse de um decifrador de charadas.
Mas eu não tenho princípios. Hoje defendo uma coisa, amanhã outra. Mas não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei. Brincar com as ideias e com os sentimentos pareceu-me sempre o destino supremamente belo. Tento realizá-lo quanto posso.
Nunca me tinha sentido desqualificado. Como lhe agradecer ter-me ministrado esse prazer! Ele é uma volúpia suave, como que longínqua.
Não nos entendem, bem sei...
...Assim como criador de anarquias me pareceu sempre o papel digno de um intelectual (dado que a inteligência desintegra e a análise estiola).

Fernando Pessoa, 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação' 

Sónia & José Costa





O Sonho é a Pior das Cocaínas...

O sonho é a pior das cocaínas, porque é a mais natural de todas. Assim se insinua nos hábitos com a facilidade que uma das outras não tem, se prova sem se querer, como um veneno dado. Não dói, não descora, não abate – mas a alma que dele usa fica incurável, porque não há maneira de se separar do seu veneno, que é ela mesma. 


Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego' 

Sónia & José Costa





O Maior Amor e as Coisas que Se Amam...

Tomara poder desempenhar-me, sem hesitações nem ansiedades, deste mandato subjectivo cuja execução por demorada ou imperfeita me tortura e dormir descansadamente, fosse onde fosse, plátano ou cedro que me cobrisse, levando na alma como uma parcela do mundo, entre uma saudade e uma aspiração, a consciência de um dever cumprido. 


Mas dia a dia o que vejo em torno meu me aponta novos deveres, novas responsabilidades da minha inteligência para com o meu senso moral. Hora a hora a (...) que escreve as sátiras surge colérica em mim. Hora a hora a expressão me falha. Hora a hora a vontade fraqueja. Hora a hora sinto avançar sobre mim o tempo. Hora a hora me conheço, mãos inúteis e olhar amargurado, levando para a terra fria uma alma que não soube contar, um coração já apodrecido, morto já e na estagnação da aspiração indefinida, inutilizada.

Nem choro. Como chorar? Eu desejaria poder querer (desejar) trabalhar, febrilmente trabalhar para que esta pátria que vós não conheceis fosse grande como o sentimento que eu sinto quando n'ela penso. Nada faço. Nem a mim mesmo ouso dizer: amo a pátria, amo a humanidade. Parece um cinismo supremo. Para comigo mesmo tenho um pudor em dizê-lo. Só aqui lh'o registo sobre papel, acanhadamente ainda assim, para que n'alguma parte fique escrito. Sim, fique aqui escrito que amo a pátria funda, (...) doloridamente.
Seja dito assim sucinto, para que fique dito. Nada mais.

Não falemos mais. As coisas que se amam, os sentimentos que se afagam guardam-se com a chave d'aquilo a que chamamos «pudor» no cofre do coração. A eloquência profana-os. A arte, revelando-os, torna-os pequenos e vis. O próprio olhar não os deve revelar.
Sabeis decerto que o maior amor não é aquele que a palavra suave puramente exprime. Nem é aquele que o olhar diz, nem aquele que a mão comunica tocando levemente n'outra mão. É aquele que quando dois seres estão juntos, não se olhando nem tocando os envolve como uma nuvem, que lhes (...)
Esse amor não se deve dizer nem revelar. Não se pode falar dele.

Fernando Pessoa, 'Inéditos' 

Sónia & José Costa